Foi no mês passado que eu conheci o Acre, numa sala de cinema no centro do Rio de Janeiro. O Acre Existe, mesmo. Dirigido e realizado por Paulo Silva Jr., Bruno Graziano, Milton Leal e Raoni Gruber, o documentário longa-metragem foi feito com mais de 10mil quilômetros rodados entre ida e volta, Acre - São Paulo, um mês e alguns dias no final de 2011. O filme é encontros, no amplo sentido, são histórias que vão te conquistando pela simplicidade, pela sinceridade de um povo livre e criativo, que supera suas limitações históricas com a força vinda da natureza, da imensidão da vida que os cerca. Aos poucos a gente vai pegando carona e quando vê já está quase indo pro Acre, conhecer o Cícero, a Brasiléia, o Rio Croa, o Daime, não tem como sair ileso.
Em conversa com o amigo André Sandino, cineasta e curador, lembro-me: "É um filme de investigação né. O filme começa com eles se propondo a mergulhar em um lugar que de certa forma é mítico ou imaginário, construído por clichês de quem vive a vida no sudeste. E chegando nesse lugar eles, os investigadores, começam a procurar pelos clichês e pelas pequenas historias que constroem o cotidiano do lugar.". Quatro paulistas resolvem desvendar um Acre, que salvo as piadas, existe e o transformam antes mesmo de se tornar filme e livro, como disse o jornalista Altino Machado, "há um quê de emoção no ar do Acre.".
À parte o mundo que encontraram ao norte, conhecer o Acre é conhecer os acreanos. É bonito de ver a sensibilidade dos depoimentos e a diversidade também, ora falando sobre o estado e seus paradigmas, ora falando sobre a vida, sobre um amor perdido, sobre solidão, floresta, música, poesia, tudo isso constrói uma narrativa especial sobre a relação do acreano com o seu lugar.
O filme-livro foi feito com pequenos apoios pontuais, ou seja, totalmente de forma independente, com dedicação livre e espontânea. O Paulo, autor do livro que é o diário de bordo dessa epopeia, me contou um pouco mais sobre este projeto numa microentrevista aqui.
K. A viagem de um pouco mais de um mês ao Acre rendeu um documentário longa-metragem e um livro com 300 páginas, um trabalho que tem uma forte expressão de intimidade com os personagens. Os vínculos afetivos contribuíram no produto final?
P. Os vínculos afetivos são o produto final. Não que precise ser assim, mas na ida ao Acre nós experimentamos exatamente essa forma de abordagem, de relação, de projeto. O filme é sobre uma descoberta, é sobre viajar pro lugar que você menos conhece, então a gente estava ali pra criar vínculos mesmo. Funcionou, hoje sou bem resolvido com esses supostos limites entre entrevistado e entrevistador, entre realizador e público, entre o lado de cá e o lado de lá da câmera, entre o diretor e o personagem. Estamos todos na mesma, na mesmíssima, inquietos com nossos conflitos internos, nas nossas problemáticas lembranças e questões, seja você um senhor sentado no sofá de sua casa no interior do Acre quando entram quatro viajantes paulistas ou seja você um cara de 23 anos entrando num carro no centro de São Paulo pra bater na porta de alguém num canto que você jamais imaginou estar. Meio que automaticamente isso foi dando certo, e não sei se viajamos pra fazer um filme ou fizemos um filme pra viajar, não sei se fizemos amigos filmando ou filmamos fazendo amigos, é tudo a mesma experiência, o mesmo exercício. O Eduardo Coutinho diz no documentário que o Carlos Nader fez com ele em 2013, 'não volto ao lugar do crime, a volta vira rotina, a rotina é insuportável, o momento com ele nunca vai ser igual'. Essa viagem, no âmbito do cinema, foi uma grande aula sobre toda essa relação que envolve as pessoas e lugares que vão passando por você quando está por aí rodando um documentário. Acho que na grande maioria dos personagens do filme rolou essa sintonia, entre captar AQUELE momento e valorizar, também, a convivência, o estar ali, construindo uma ideia juntos.
K. Em alguns trechos do livro você cita a expressão “road movie”. O filme é o making of de uma viagem?
P. Pela proposta do filme – a nossa descoberta e a viagem como personagens centrais –, o processo está muito presente na narrativa. Acho que tem muito de making of do projeto, não especificamente da viagem. A gente chega em Rio Branco e tem uma equipe da TV Globo pra filmar o primeiro passo da equipe na capital acreana depois de cinco dias de estrada. Então, assim, isso tinha de estar no filme! A gente gostou muito de brincar com essa coisa do que é filme, o que é making of... o filme tem até um pouco de cara de câmera escondida às vezes, como se só quisesse mostrar aquilo tudo mesmo, nós e as pessoas batendo papo, entendendo, afinal, nossas diferenças, semelhanças, angústias. E aí acho que há três fatores que ajudaram dar essa cara pro filme: primeiro, o fato do projeto ter ganhado repercussão lá em Rio Branco antes mesmo da gente viajar, por matérias que fizeram sobre o filme, pela divulgação de nossa tentativa de financiamento coletivo (mal sucedido), e isso gerou uma procura da imprensa, uma curiosidade das pessoas, de forma que a gente não tinha como se excluir do processo mais, nós éramos, sim, personagens também; segundo, a ideia de câmera ligada o tempo todo, nós filmando nós mesmos sendo entrevistados, tomando ayahuasca ou conversando num boteco, seguindo pessoas, filmando o que o momento mandasse, nem que isso representasse assumir o microfone de captação de áudio dentro do quadro, não como uma coisa pensada, mas como linguagem assumida mesmo, olha, tem quatro caras no Acre filmando o que eles forem descobrindo e convivendo, pode ser que eles apareçam também; terceiro, acho que a nossa própria organização interna, éramos todos motoristas, produtores, diretores, idealizadores, enfim, a falta de procedimentos mais convencionais e o fato de nós quatro, amigos, sermos os responsáveis por tudo, do editorial ao trocar de pneu, ajudou a misturar todas essa frentes, nós, o filme, o livro, a pré-produção, a viagem etc, fica tudo meio junto.
K. O pesquisador Marcelo Ikeda nomeia o cinema contemporâneo brasileiro como cinema de garagem. O novíssimo cinema é feito com baixo orçamento e alta dose autoral. O Acre Existe pode ser um exemplo de cinema de garagem?
P. Não conheço exatamente como ele construiu o conceito de cinema de garagem, então vou fugir um pouco da pergunta pra falar dessa ideia de cinema independente, de baixo orçamento e autoral. Eu acho que O Acre Existe é um exemplo de cinema. Ponto. Nós mesmos, certa vez, combinamos que, apesar da tentação e das perguntas que acabam girando em torno disso, não podemos a cada vez que for apresentar o filme ficar falando dos perrengues, da falta de patrocínio, de viajar num carro 1.0 sem ar condicionado por 10mil km, da dificuldade que é captar grana. A gente foi porque quis, todo mundo tinha trabalho em São Paulo pra pagar as contas. Então não gosto muito desse ar de heroísmo que pode rolar, sabe? Nossa, tão jovens, fazendo cinema independente, parabéns. Não, não. A gente trabalhou, juntou uma grana, e foi gastando como deu num projeto pessoal, mas é um filme, tem de ser avaliado como um filme. Os desafios de trabalhar com baixo orçamento servem pra você se reinventar, assumir isso no processo, na linguagem, não pra se colocar num degrau abaixo, de independente, como se você tivesse uma muleta pra justificar qualquer coisa diante dos filmes do mercado. É cinema, está tudo no mesmo balaio. O mesmo pro livro. O fato de ser independente não gera desculpas pro texto estar sem revisão ou a impressão ruim. É um livro, foi pra prateleira, responda à altura de um cara que comprou e levou pra casa o respeitando como um livro, não como 'um livro independente duns moleques sem editora nem patrocínio'. O Cavi Borges falou bastante disso nessa oficina que ele deu agora no Rio e a gente conseguiu pegar na véspera da exibição do filme. Sabe, vai pro pau, vende o filme onde dá pra vender, junta a galera, troca trabalho, troca favor, não tem grana pra luz, paciência, filma mais cedo, assume o escuro, entra no carro e vai. Mas não fica esperando a condição perfeita e reclamando da falta de oportunidade. É cinema, é jornalismo, é literatura. Dá seu jeito de seduzir quem vai assistir, ler. Por isso não me vejo, enquanto realizador sem patrocínio ou edital, como um contraponto aos que assim o fazem. Até porque também quero fazer meu filme com grana um dia, e não pode ser isso que muda a minha relação com a coisa.
K. O gênero documental em síntese é um filme que tem um compromisso com a verdade, mas cada vez mais o documentário contemporâneo mistura realidade e ficção. No filme, a perspectiva pessoal é mais importante do que a realidade?
P. O Coutinho falava, o passado contado é melhor que o passado vivido. Então é isso, ligou a câmera, está fazendo um registro, não tem mais muito como se prender ao que é realidade ou não, deixa ter exagero, mentira, atuação, verdade. Aliás, o que é verdade, o que só o personagem sabe ou o que ele compartilha com a câmera? É aquilo ali. A pessoa fala e age como ela quiser, e quem somos nós pra julgar o que é real? O filme é de verdade, essas pessoas existem, são elas falando mesmo, agora, a distância disso pra uma obra de ficção é bem pequena. Até porque a montagem te permite dar voltas, você que decide se o cara legal vai ser um chato, se o cara chato vai ser legal perante ao público. O Coutinho dizia também que a entrevista é uma relação erótica, por isso ele falava com as pessoas a dois ou três metros de distância, é uma relação de corpo. Essa sedução, de sentar na casa do personagem para ouvir o que ele tem a contar, é mágica, ali o personagem pode se abrir, se fechar, se emocionar, se constranger, pode engolir algum segredo que não queira contar, como pode deixar escapar. É uma troca de olhares meio sexual mesmo, de ganhar o entrevista ou não, às vezes não tem química e não rola legal. Ali é um jogo. E pra não falar que falei pouco do Coutinho, lembrei que ele dizia também que ouvir é ser legitimado. Você, num filme, é o você registrado. Então o personagem escolhe o que ele quer ser na tela.
K. Muitos personagens do filme-livro falam em solidão. O jornalista Altino Machado fala se divertindo “Sempre me pergunto se estou no começo ou no fim do mundo. Se estou no gênesis ou no apocalipse.”. Você sentiu em algum momento a solidão acreana?
P. Tem o lance do estereótipo: eu, citadino, morando no centro de São Paulo, sempre vou achar um tanto quanto solitário conhecer alguém que mora distante uma hora de moto numa estrada de terra longe do comércio mais próximo de uma cidade do interior. Então acho que é algo que soa como solidão pra nós, urbanos, dentro desse Brasil que na verdade tem muito mais de interior do Acre que de centro de São Paulo. Agora, o acreano tem um engajamento pelo fato de ser chutado pra escanteio nas grandes questões nacionais. E isso o fortalece. A gente aqui na cidade gigante perdeu um pouco essa noção de cultura local, de exportação e importação de cultura e informação, porque já misturou tanto, já virou tanto uma coisa só, é gente do mundo inteiro circulando nessas ruas apertadas que você mal consegue associar identidades e origens. No Acre, não, o acreano sabe que não vai ter show dos Rolling Stones em Rio Branco, que o Neymar não vai jogar lá, e ele vive num lugar de onde os voos são caríssimos, então não tem muito pra onde correr. E isso me passou uma sensação maior de pertencimento. São eles e ponto. O rio enche, inunda a cidade, e não tem a comoção nacional que tem em relação a um desastre em Santa Catarina. Mas é isso mesmo, eles são fortes e não ficam se lamentando, não, pelo contrário. O próprio Altino fala no filme: quanto mais as pessoas acharem que o Acre não existe, melhor a gente vai passando. O acreano é forte, a história do estado sendo anexado ao Brasil é lindíssima, é de luta. O seringueiro é um personagem gigante e central na história do nosso país exportador de riqueza, quintal estrangeiro. Então existe, sim, essa ideia de que 'estamos no canto do Brasil, o Centro-Sul está cagando pra gente e não adianta ficar esperando sentado'. O acreano tem de se virar pra ter acesso às coisas, e se vira muito bem, produz, é impressionante como qualquer acreano tem um projeto, uma ideia, um grupo que ele se encontra pra estudar ou fazer música, teatro, o que for. Nesse contexto, a internet é fundamental pra que eles descubram o mundo e o mundo os descubra de fato.
K. Na era da informação, o Acre já existe para muitos, ou ainda para poucos? Como o filme-livro contribui para a desmistificação do estado?
P. Depois de fazer o filme e o livro, já tinha a ideia de que brincar que o Acre não existe acabou se tornando 'cult', e o Amapá, que nem a piada tem? Mas, enfim, eu acho espetacular que a gente, sem ter planejado muito nem ter a ambição (ou mesmo a capacidade, talvez) de fazer isso, acabou mexendo com o imaginário das pessoas, abrindo a cabeça prum lugar tão pouco visitado. O Acre tem toda uma magia, uma história própria, é definitivamente um lugar de formação diferente de qualquer outra do país, tanto nas demandas históricas quanto no fluxo migratório. Dizem também que beber da água do rio Acre é um perigo, corre o risco de não conseguir mais ficar longe. É sedutor, eu diria, e ainda que tenha muita coisa grande rolando daquele lado do país e a gente mal tendo notícia, acho do caralho que as pessoas vejam o filme, leiam o livro, e fiquem com vontade de conhecer o Acre.
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